(Patândjali, Yoga Sutras, capítulo 2, verso 16, século
V a. C.).
A intenção é de conversar sobre um modo de agir e de viver
consistente com a natureza feliz de ser humano. Esse modo é indicado e descrito
na doutrina de Yoga que sintetiza a sabedoria prática dos sábios hindus e que
foi desenvolvida ao longo de séculos da cultura sânscrita, nos quase dois
milênios que antecederam a era cristã no ocidente e a budista na Índia.
Essa doutrina ficou velada pelo budismo até o ressurgimento do hinduísmo na Índia, ali pelo fim do século VIII. A tradição de yoga voltou a ser referência para o hinduísmo então emergente e assim prosseguiu continuamente reformatada sob várias denominações de tipos de yoga, conforme as tendências dos novos tempos, tanto na Índia quanto a seguir no mundo anglo-saxão, bem como no restante do mundo pelos dias atuais.
Seu núcleo, porém, permaneceu inalterado nos 196 versos
fixados por Patândjali no texto dos Yoga Sutras, cuja estabilidade denota a
sabedoria com que a tradição dos yogues compreende a natureza de ser humano e
indica meios eficazes para cada indivíduo administrar o seu principal anseio:
viver em autêntico estado de graça ou, no jargão atual, ser feliz!
A parte daquele texto que focaliza o método de cada um
administrar a própria felicidade é o segundo dos quatro capítulos. Nele tratam-se
as atitudes e os comportamentos que propiciam um estado pessoal de agir com
autenticidade e de se minimizarem as perturbações aflitivas. Estas são as de
característica mental e mais sutis que as mais óbvias e grosseiras como as de
comportamento doentio ou patológico, as quais são consideradas como
impedimentos à condição de tranquila autenticidade e, por isso, elas são citadas
logo no primeiro capítulo dos Yoga Sutras, que trata daquela condição básica de
yoga chamada de samadhi.
Minimizar as condições aflitivas da mente que provocam
sofrimento requer o esclarecimento e a compreensão dessas perturbações, de como
elas se formam e de como evitá-las ou superá-las, além de requerer a firme
disposição de ser autenticamente feliz.
As tais perturbações elencadas nos sutras são cinco e a
primeira é o campo onde as demais se criam e se alastram: 1- falta de
sabedoria, 2- egoidade equivocada, 3- desejo da experiência de prazer, 4-
aversão da experiência de dor, 5- necessidade de pertencimento ou inclusão.
As quatro últimas estão sempre aptas a manifestarem-se no
campo da primeira (falta de sabedoria). A situação dessas perturbações seria
como se elas fossem sementes dispersas no terreno mental e estivessem ou
adormecidas, ou enfraquecidas, ou isoladas, ou mesmo totalmente ativas a se
aproveitarem de condições favoráveis para manifestarem-se nas mentes desatentas
por meio de dramas provocadores de sofrimento.
Mas o que é a falta de sabedoria destacada nos sutras de
Patândjali e que fornece o campo para a manifestação das perturbações? A
resposta é objetiva e se constitui de quatro confusões frequentes de percepção
errônea: 1- perceber eternidade no que é perecível (por exemplo, não aceitar
que o meu corpo é perecível, embora seja óbvio que ele surge, dura e se desfaz
com o tempo, assim como tudo o mais que é material, pois apenas o que não é
temporário tem eternidade); 2- perceber pureza no que é impuro; 3- perceber
bem-estar no que é desagradável; 4- perceber individualidade no que é múltiplo
ou coletivo. Assim, surgirão oportunidades para perturbações aflitivas sempre
que eu incorrer em alguma dessas quatro distorções perceptivas.
Em vez disso, posso exercer a minha percepção de modo sincero
e verdadeiro com a atenção de quem anda por uma floresta ou campo natural e que
sabe que precisa fazer a coisa certa para lidar favoravelmente com a realidade,
em vez de seguir desatento a acreditar em sorte ou azar como método de
sobrevivência bem sucedida.
De volta às perturbações decorrentes da falta de sabedoria, a
segunda (egoidade equivocada) ocorre quando eu confundo o que é meu comigo
mesmo; o meu corpo é meu; a minha mente é minha; são meus instrumentos de percepção,
ação e sobrevivência, enquanto eu sou quem os nutre e os utiliza. Eu sou apenas
eu mesmo: a vida que se nutre e realiza a si própria conforme as circunstâncias
e as suas vontades. Tanto o corpo quanto a mente são acumulações providenciadas
pela inteligência criadora manifestada em mim e facilitadas (ou dificultadas)
pelas circunstâncias e minhas vontades. Corpo e mente são perecíveis, mas quem
pode afirmar que o eu não é eterno, já que é espiritual?
Corpo e mente são acumulações organizadas pela inteligência
criadora em mim e, portanto, são produto dessa inteligência com os ingredientes
materiais e informacionais disponíveis nas minhas circunstâncias. Enquanto é
garantida por origem a pureza da inteligência criativa da vida, essa garantia de
pureza nem sempre existe nos meus ingredientes corporais e mentais, porque a
gente vai usando o que está disponível a cada momento de nutrição ou acumulação.
As experiências de prazer e dor são, portanto, necessárias
porque decorrem consequentemente das interações acidentais com a realidade, da
qual eu vou fazendo parte ao viver. Elas em si mesmas não são perturbações, mas
sim fatos decorrentes do viver. O que é perturbação causadora de aflição ou
sofrimento é o desejar prazeres ou a aversão a dores, porque ambos não são
fatos do viver, mas dramas mentais em graus variados de memórias ou de
projeções futuristas.
Por fim, a perturbação de confundir a própria individualidade
com o que não é propriamente individual manifesta-se como, por exemplo, na
identificação com os amplos coletivos sociais: sou flamenguista, sou cristão,
sou carioca, etc. Ou em relação a coletivos menos amplos como a família Martins,
a turma inconsequente da esquina, a patota do terceiro ano da escola e mais uma
lista interminável de possibilidades de inclusão em redes sociais, até mesmo a
maior das inversões: aquela de pensar, silenciosamente, pertencer ao próprio
corpo (um coletivo de micro-organismos organizados em condomínio, do qual eu
acho que sou o síndico) e sofrer o drama de medo da morte natural.
A esta altura da descrição você já deve estar sofrendo
bastante, com arrependimento de estar lendo tudo isto e querendo vislumbrar
como sair dessas armadilhas ou nem cair nelas. Mas o Patândjali ainda vai nos
mostrar, primeiramente, a chave do segredo que abre as portas dessas arapucas
mentais. Sim, porque a raiz desses emaranhados que nos capturam é a mente! Sim;
é ela quem articula, fatura, recebe e armazena os produtos ou resultados de
todas as ações minhas e dos outros para as quais eu tenha expectativas.
Quando eu deixo a minha mente desconectar-se da vida real
pela minha falta de sabedoria, ela se dirige para e pelos frutos das ações e a
mente torna-se a raiz de todas as perturbações. Eu passo a viver para o
desfrute do que as ações minhas e dos outros produzem. O viver se reduz a
desfrutar os frutos do prazer ou do arrependimento conforme esses frutos
provenham de ações virtuosas ou viciosas. Porém, como nada material é
permanente, e nem mesmo o que é satisfatório permanece desse modo, então, tudo
vira sofrimento nessas condições mentais, por consequência.
Agora então você já está chegando à desesperança, porque as
coisas só pioram! Mas aqui surge o alerta que originou esta conversa toda: “o
sofrimento que ainda não surgiu deve ser evitado”!
Os Yoga Sutras de Patândjali dizem que a causa dos dramas
mentais é o apego ou a identificação com as expectativas dos frutos das ações
(nossas e dos outros), os quais são todos temporais e perecíveis, alguns
objetivos e outros subjetivos, mas sempre de uma realidade material
transitória. Esses frutos, porém, são atraentes e sedutores pela própria
aparência ou dinâmica de realização que sugerem preencher alguma carência da
nossa falta de sabedoria eventual.
No entanto, se eu me focalizar atentamente ao que eu estiver
fazendo e ao mesmo tempo ocupar a minha mente apenas com a minha atividade, eu
não deixarei tempo nem espaço para a mente perder-se nas perturbações latentes.
As cantigas de trabalho dos pescadores ao puxarem as redes, as dos lavradores
ao tratar o campo de semeadura ou colheita, os mantras ou rezas que os devotos
entoam em suas atividades diárias, todas são bons exemplos de como ocupar a
mente para que ela não atrapalhe a focalização na atividade em foco.
A essa focalização na atividade do seu genuíno interesse e
merecedora da sua atenção convicta chama-se dhyana na nomenclatura de yoga.
Essa focalização corresponde às coisas e processos que têm a ver com você em
cada circunstância da sua vida, do mais simples e sutil ao mais complexo e
denso. Por isso, dhyana é o componente mais citado e enfatizado nos Yoga
Sutras. Ele propicia a condição de (samadhi) estar em si tanto dinamicamente
quanto estaticamente. Esse termo, dhyana, é de tanto valor cultural que foi
sendo transliterado desde a Índia védica até o mundo moderno com a grafia
“zen”, tão citada atualmente e vinculada ao ramo da cultura hinduísta do
budismo.
Mas Patândjali também enfatiza um segundo modo de se evitar o
sofrimento que ainda não surgiu, o qual é empregar o discernimento (viveka, em
sânscrito), que é a nossa capacidade inteligente de separação, para cortar ou
separar a união mental com o que é material, transitório, perecível, impuro,
desconfortável ou coletivo.
Tudo aquilo até pode ser meu circunstancialmente, mas não sou
eu e, portanto, é descartável para mim e para a minha felicidade. O meu autêntico
bem-estar não está num plano de expectativa material de tempo e espaço de
realizações ou aquisições materiais, mas sim num campo espiritual de realização
da vida que eu sou plenamente.
Na condição de discernimento eu consigo isolar a minha
percepção das perturbações aflitivas que me sequestraram para os equívocos,
confusões e dramas mentais da falta de sabedoria e criadores de apego e sofrimento.
Esse isolamento protetor da força da minha percepção é denominado kaivalyam, em
sânscrito, e é obtido pelo discernimento que é a essência do método de yoga
sistematizado por Patândjali.
Os yogues compreenderam que para instalar a habilidade de
discernimento seria necessário praticar um método, um processo habitual, porque
sem repetição, sem treino não há maestria nem domínio de nada. Para tanto, no
segundo capítulo dos Yoga Sutras, é explicitado um método prático de aperfeiçoar
o discernimento entre o que tem a ver comigo e o que não tem, de modo a potencializar
a minha força de percepção, quem eu verdadeiramente sou e a minha natural
condição de felicidade de viver.
Aqui se focalizaram os dois recursos essenciais (dhyana e
viveka) desse método dos Yoga Sutras para evitar surgir o sofrimento, mas a descrição
completa desse método, cuja prática deve ser diária e por toda a vida, desenvolve-se
em oito componentes que compreendem: atitudes e comportamentos sociais, de
respeito aos outros e a mim mesmo; mentais, de recolhimento das atividades
mentais; corporais, de recolhimento dos movimentos e dos sentidos; e
espirituais, nos quais a consciência assume o comando de nossos comportamentos,
seja para agir, seja para não agir em cada circunstância, mas para exercer a
força da intuição que nos evidencia a verdade de cada situação e que nos exige
decisões.
Grato pela sua atenção de leitura!
Thadeu
Martins
thadeu.martins@gmail.com
- autor do livro “Conversas com um yogue urbano” disponível na Amazon em
formato impresso ou e-book Kindle
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