quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

O sofrimento que ainda não surgiu deve ser evitado

 


"O sofrimento que ainda não surgiu deve ser evitado”

(Patândjali, Yoga Sutras, capítulo 2, verso 16, século V a. C.).

 

A intenção é de conversar sobre um modo de agir e de viver consistente com a natureza feliz de ser humano. Esse modo é indicado e descrito na doutrina de Yoga que sintetiza a sabedoria prática dos sábios hindus e que foi desenvolvida ao longo de séculos da cultura sânscrita, nos quase dois milênios que antecederam a era cristã no ocidente e a budista na Índia.

Essa doutrina ficou velada pelo budismo até o ressurgimento do hinduísmo na Índia, ali pelo fim do século VIII. A tradição de yoga voltou a ser referência para o hinduísmo então emergente e assim prosseguiu continuamente reformatada sob várias denominações de tipos de yoga, conforme as tendências dos novos tempos, tanto na Índia quanto a seguir no mundo anglo-saxão, bem como no restante do mundo pelos dias atuais.

Seu núcleo, porém, permaneceu inalterado nos 196 versos fixados por Patândjali no texto dos Yoga Sutras, cuja estabilidade denota a sabedoria com que a tradição dos yogues compreende a natureza de ser humano e indica meios eficazes para cada indivíduo administrar o seu principal anseio: viver em autêntico estado de graça ou, no jargão atual, ser feliz!

A parte daquele texto que focaliza o método de cada um administrar a própria felicidade é o segundo dos quatro capítulos. Nele tratam-se as atitudes e os comportamentos que propiciam um estado pessoal de agir com autenticidade e de se minimizarem as perturbações aflitivas. Estas são as de característica mental e mais sutis que as mais óbvias e grosseiras como as de comportamento doentio ou patológico, as quais são consideradas como impedimentos à condição de tranquila autenticidade e, por isso, elas são citadas logo no primeiro capítulo dos Yoga Sutras, que trata daquela condição básica de yoga chamada de samadhi.

Minimizar as condições aflitivas da mente que provocam sofrimento requer o esclarecimento e a compreensão dessas perturbações, de como elas se formam e de como evitá-las ou superá-las, além de requerer a firme disposição de ser autenticamente feliz.

As tais perturbações elencadas nos sutras são cinco e a primeira é o campo onde as demais se criam e se alastram: 1- falta de sabedoria, 2- egoidade equivocada, 3- desejo da experiência de prazer, 4- aversão da experiência de dor, 5- necessidade de pertencimento ou inclusão.

As quatro últimas estão sempre aptas a manifestarem-se no campo da primeira (falta de sabedoria). A situação dessas perturbações seria como se elas fossem sementes dispersas no terreno mental e estivessem ou adormecidas, ou enfraquecidas, ou isoladas, ou mesmo totalmente ativas a se aproveitarem de condições favoráveis para manifestarem-se nas mentes desatentas por meio de dramas provocadores de sofrimento.

Mas o que é a falta de sabedoria destacada nos sutras de Patândjali e que fornece o campo para a manifestação das perturbações? A resposta é objetiva e se constitui de quatro confusões frequentes de percepção errônea: 1- perceber eternidade no que é perecível (por exemplo, não aceitar que o meu corpo é perecível, embora seja óbvio que ele surge, dura e se desfaz com o tempo, assim como tudo o mais que é material, pois apenas o que não é temporário tem eternidade); 2- perceber pureza no que é impuro; 3- perceber bem-estar no que é desagradável; 4- perceber individualidade no que é múltiplo ou coletivo. Assim, surgirão oportunidades para perturbações aflitivas sempre que eu incorrer em alguma dessas quatro distorções perceptivas.

Em vez disso, posso exercer a minha percepção de modo sincero e verdadeiro com a atenção de quem anda por uma floresta ou campo natural e que sabe que precisa fazer a coisa certa para lidar favoravelmente com a realidade, em vez de seguir desatento a acreditar em sorte ou azar como método de sobrevivência bem sucedida.

De volta às perturbações decorrentes da falta de sabedoria, a segunda (egoidade equivocada) ocorre quando eu confundo o que é meu comigo mesmo; o meu corpo é meu; a minha mente é minha; são meus instrumentos de percepção, ação e sobrevivência, enquanto eu sou quem os nutre e os utiliza. Eu sou apenas eu mesmo: a vida que se nutre e realiza a si própria conforme as circunstâncias e as suas vontades. Tanto o corpo quanto a mente são acumulações providenciadas pela inteligência criadora manifestada em mim e facilitadas (ou dificultadas) pelas circunstâncias e minhas vontades. Corpo e mente são perecíveis, mas quem pode afirmar que o eu não é eterno, já que é espiritual?

Corpo e mente são acumulações organizadas pela inteligência criadora em mim e, portanto, são produto dessa inteligência com os ingredientes materiais e informacionais disponíveis nas minhas circunstâncias. Enquanto é garantida por origem a pureza da inteligência criativa da vida, essa garantia de pureza nem sempre existe nos meus ingredientes corporais e mentais, porque a gente vai usando o que está disponível a cada momento de nutrição ou acumulação.

As experiências de prazer e dor são, portanto, necessárias porque decorrem consequentemente das interações acidentais com a realidade, da qual eu vou fazendo parte ao viver. Elas em si mesmas não são perturbações, mas sim fatos decorrentes do viver. O que é perturbação causadora de aflição ou sofrimento é o desejar prazeres ou a aversão a dores, porque ambos não são fatos do viver, mas dramas mentais em graus variados de memórias ou de projeções futuristas.

Por fim, a perturbação de confundir a própria individualidade com o que não é propriamente individual manifesta-se como, por exemplo, na identificação com os amplos coletivos sociais: sou flamenguista, sou cristão, sou carioca, etc. Ou em relação a coletivos menos amplos como a família Martins, a turma inconsequente da esquina, a patota do terceiro ano da escola e mais uma lista interminável de possibilidades de inclusão em redes sociais, até mesmo a maior das inversões: aquela de pensar, silenciosamente, pertencer ao próprio corpo (um coletivo de micro-organismos organizados em condomínio, do qual eu acho que sou o síndico) e sofrer o drama de medo da morte natural.

A esta altura da descrição você já deve estar sofrendo bastante, com arrependimento de estar lendo tudo isto e querendo vislumbrar como sair dessas armadilhas ou nem cair nelas. Mas o Patândjali ainda vai nos mostrar, primeiramente, a chave do segredo que abre as portas dessas arapucas mentais. Sim, porque a raiz desses emaranhados que nos capturam é a mente! Sim; é ela quem articula, fatura, recebe e armazena os produtos ou resultados de todas as ações minhas e dos outros para as quais eu tenha expectativas.

Quando eu deixo a minha mente desconectar-se da vida real pela minha falta de sabedoria, ela se dirige para e pelos frutos das ações e a mente torna-se a raiz de todas as perturbações. Eu passo a viver para o desfrute do que as ações minhas e dos outros produzem. O viver se reduz a desfrutar os frutos do prazer ou do arrependimento conforme esses frutos provenham de ações virtuosas ou viciosas. Porém, como nada material é permanente, e nem mesmo o que é satisfatório permanece desse modo, então, tudo vira sofrimento nessas condições mentais, por consequência.

Agora então você já está chegando à desesperança, porque as coisas só pioram! Mas aqui surge o alerta que originou esta conversa toda: “o sofrimento que ainda não surgiu deve ser evitado”!

Os Yoga Sutras de Patândjali dizem que a causa dos dramas mentais é o apego ou a identificação com as expectativas dos frutos das ações (nossas e dos outros), os quais são todos temporais e perecíveis, alguns objetivos e outros subjetivos, mas sempre de uma realidade material transitória. Esses frutos, porém, são atraentes e sedutores pela própria aparência ou dinâmica de realização que sugerem preencher alguma carência da nossa falta de sabedoria eventual.

No entanto, se eu me focalizar atentamente ao que eu estiver fazendo e ao mesmo tempo ocupar a minha mente apenas com a minha atividade, eu não deixarei tempo nem espaço para a mente perder-se nas perturbações latentes. As cantigas de trabalho dos pescadores ao puxarem as redes, as dos lavradores ao tratar o campo de semeadura ou colheita, os mantras ou rezas que os devotos entoam em suas atividades diárias, todas são bons exemplos de como ocupar a mente para que ela não atrapalhe a focalização na atividade em foco.

A essa focalização na atividade do seu genuíno interesse e merecedora da sua atenção convicta chama-se dhyana na nomenclatura de yoga. Essa focalização corresponde às coisas e processos que têm a ver com você em cada circunstância da sua vida, do mais simples e sutil ao mais complexo e denso. Por isso, dhyana é o componente mais citado e enfatizado nos Yoga Sutras. Ele propicia a condição de (samadhi) estar em si tanto dinamicamente quanto estaticamente. Esse termo, dhyana, é de tanto valor cultural que foi sendo transliterado desde a Índia védica até o mundo moderno com a grafia “zen”, tão citada atualmente e vinculada ao ramo da cultura hinduísta do budismo.

Mas Patândjali também enfatiza um segundo modo de se evitar o sofrimento que ainda não surgiu, o qual é empregar o discernimento (viveka, em sânscrito), que é a nossa capacidade inteligente de separação, para cortar ou separar a união mental com o que é material, transitório, perecível, impuro, desconfortável ou coletivo.

Tudo aquilo até pode ser meu circunstancialmente, mas não sou eu e, portanto, é descartável para mim e para a minha felicidade. O meu autêntico bem-estar não está num plano de expectativa material de tempo e espaço de realizações ou aquisições materiais, mas sim num campo espiritual de realização da vida que eu sou plenamente.

Na condição de discernimento eu consigo isolar a minha percepção das perturbações aflitivas que me sequestraram para os equívocos, confusões e dramas mentais da falta de sabedoria e criadores de apego e sofrimento. Esse isolamento protetor da força da minha percepção é denominado kaivalyam, em sânscrito, e é obtido pelo discernimento que é a essência do método de yoga sistematizado por Patândjali.

Os yogues compreenderam que para instalar a habilidade de discernimento seria necessário praticar um método, um processo habitual, porque sem repetição, sem treino não há maestria nem domínio de nada. Para tanto, no segundo capítulo dos Yoga Sutras, é explicitado um método prático de aperfeiçoar o discernimento entre o que tem a ver comigo e o que não tem, de modo a potencializar a minha força de percepção, quem eu verdadeiramente sou e a minha natural condição de felicidade de viver.

Aqui se focalizaram os dois recursos essenciais (dhyana e viveka) desse método dos Yoga Sutras para evitar surgir o sofrimento, mas a descrição completa desse método, cuja prática deve ser diária e por toda a vida, desenvolve-se em oito componentes que compreendem: atitudes e comportamentos sociais, de respeito aos outros e a mim mesmo; mentais, de recolhimento das atividades mentais; corporais, de recolhimento dos movimentos e dos sentidos; e espirituais, nos quais a consciência assume o comando de nossos comportamentos, seja para agir, seja para não agir em cada circunstância, mas para exercer a força da intuição que nos evidencia a verdade de cada situação e que nos exige decisões.  

Grato pela sua atenção de leitura!

Thadeu Martins

thadeu.martins@gmail.com - autor do livro “Conversas com um yogue urbano” disponível na Amazon em formato impresso ou e-book Kindle

 

 

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